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TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO
Edições, manuscritos e diferenças
Examinamos até agora as práticas de cópia comuns aos primeiros três séculos do cristianismo, quando a maioria dos copistas dos textos cristãos não era formada de profissionais treinados para a função, mas simplesmente de cristãos cultos dessa ou daquela comunidade, capazes de ler e de escrever e que, por isso, eram convocados a reproduzir os textos da comunidade em seu tempo livre.1
Pelo fato de não terem sido
bem treinados para desempenhar esse tipo de função, eram mais
propensos a cometer erros do que os copistas profissionais. Isso explica
por que nossas cópias mais antigas dos escritos cristãos primitivos
tendem a variar mais frequentemente uma da outra e das cópias
posteriores do que as cópias posteriores (vamos dizer, da Alta Idade
Média) diferem umas das outras. É que, por fim, uma espécie de classe
de copistas profissionais passou a fazer parte do panorama intelectual
cristão e, com o advento dos copistas profissionais, práticas de cópia
mais controladas foram estabelecidas. Com isso, os erros se tornaram
bem menos frequentes.
Antes que isso ocorresse, no decorrer dos primeiros séculos do
cristianismo, os textos cristãos eram copiados em qualquer situação
onde tivessem sido escritos ou encontrados. E visto que os textos eram
copiados localmente, não é de surpreender que localidades diferentes
desenvolvessem diferentes tipos de tradição textual. Isso significa que os
manuscritos em Roma apresentavam muitos dos mesmos erros, porque
eram em sua maioria documentos “internos”, copiados um do outro;
não eram muito influenciados pelos manuscritos que estavam sendo
copiados na Palestina; os textos da Palestina tinham características
próprias, que eram distintas das que se encontravam em um lugar como
Alexandria do Egito. Além do mais, nos primeiros séculos da Igreja,
alguns locais tinham copistas melhores que outros. Pesquisadores
modernos até reconheceram que os copistas de Alexandria — que era o
maior centro intelectual do mundo antigo — eram particularmente
escrupulosos, mesmo nos primeiros séculos, e que em Alexandria uma
forma muito pura do texto dos primitivos escritos cristãos foi
preservada, década após década, por copistas cristãos dedicados e
relativamente capazes.
COPISTAS CRISTÃOS PROFISSIONAIS
Quando foi que a igreja lançou mão de copistas profissionais para
copiar seus textos? Há bons motivos para pensar que isso deve ter
ocorrido em algum momento perto do início do século IV. Até então, o
cristianismo era uma religião pequena, minoritária no Império Romano,
frequentemente antagonizada, algumas vezes perseguida.
Mas uma mudança cataclísmica se deu quando o imperador de Roma,
Constantino, converteu-se à fé por volta de 312 E.C. De uma hora para
outra, o cristianismo deixou de ser uma religião de párias sociais,
perseguida tanto pela plebe local como pelas autoridades imperiais,
para desempenhar um papel de destaque na cena religiosa do império.
Não só as perseguições foram suspensas, como favorecimentos
começaram a verter sobre a igreja, estimulados pelo poder máximo do
mundo ocidental. O resultado foram conversões em massa, à medida
que se tornava uma coisa normal ser um seguidor de Cristo num tempo
em que o próprio imperador proclamava publicamente sua adesão ao
cristianismo.
Mais e mais pessoas de alto nível de formação intelectual se
converteram à fé. Naturalmente, elas eram mais capacitadas a copiar os
textos da tradição cristã. Há razões para supor que, por essa época,
brotaram scriptoria* cristãos nas grandes áreas urbanas.2 Um
scriptorium é um lugar dedicado à cópia profissional de manuscritos.
Temos informação de scriptoria cristãos funcionando nos inícios do
século IV. Em 331 E.C., o imperador Constantino, querendo que Bíblias
magníficas fossem disponibilizadas para as grandes igrejas que mandara
construir, escreveu uma requisição ao bispo de Cesareia, Eusébio,3 para
que ele produzisse cinquenta Bíblias às expensas imperiais. Eusébio
tratou essa requisição com toda a pompa e respeito que ela merecia e se
empenhou em atendê-la. É claro que um empreendimento dessa
magnitude exigia um scriptorium profissional, sem falar nos materiais
necessários para fazer cópias exuberantes das escrituras cristãs.
Estamos já em um tempo completamente distinto de apenas um século ou dois
antes, quando as igrejas locais simplesmente solicitariam que um de seus
membros arrumasse tempo suficiente para fazer uma cópia do texto.
A partir do século IV, as cópias das Escrituras começaram a ser
feitas por profissionais. Isso naturalmente reduziu significativamente o
número de erros que se aninhavam nos textos. Por fim, à medida que as
décadas viravam séculos, a cópia das escrituras gregas se tornou
encargo de monges que trabalhavam em áreas específicas dos mosteiros,
que dedicavam seus dias a copiar os textos sagrados cuidadosa e
conscientemente. Essa prática continuou durante a Idade Média, até a
época da invenção da imprensa de tipos móveis no século XV. O grande
montante de nossos textos gregos subsistentes provém das penas desses
copistas cristãos medievais que viveram e trabalharam no Oriente (por
exemplo, em áreas que atualmente são Turquia e Grécia), conhecido
como o Império Bizantino. Por esse motivo, os manuscritos gregos, do
século XVII em diante, às vezes são classificados como manuscritos
“bizantinos”.
Como já falamos, todo aquele que tenha familiaridade com a
tradição manuscrita do Novo Testamento sabe que essas cópias
bizantinas do texto tendem a ser muito semelhantes umas às outras,
mesmo que as cópias mais antigas variem significativamente entre si e
em relação à forma do texto encontrado nessas cópias tardias. A essa
altura, os motivos para isso já devem estar claros: isso tem a ver com
quem copiava os textos (profissionais) e onde trabalhavam (numa área
relativamente limitada). Contudo, configuraria grave erro pensar que
porque os manuscritos tardios concordam tão extensamente um com o
outro, tornam-se doravante testemunhos superiores aos textos
“originais” do Novo Testamento. Alguém sempre há de perguntar:
onde esses copistas medievais conseguiam os textos que copiavam de
modo tão profissional? Eles os conseguiam dos textos antigos, cópia de
textos ainda mais primitivos. Portanto, os textos que estão mais
próximos, em termos de forma, dos originais talvez sejam, muito
inesperadamente, as cópias mais variantes e amadorísticas e não as
cópias profissionais padronizadas dos tempos posteriores.
A VULGATA LATINA
As práticas de cópia que venho sintetizando dizem respeito
principalmente à parte oriental do Império Romano, onde o grego era, e
continua sendo, a língua principal. Contudo, não demorou muito e
cristãos das regiões não-falantes do grego passaram a querer ter os
textos sagrados em suas próprias línguas locais. Naturalmente, era o
latim a língua de grande porção da área ocidental do Império Romano;
o siríaco era falado na Síria; o copta, no Egito. Em cada uma dessas
regiões, os livros do Novo Testamento vieram a ser traduzidos para as
línguas vernáculas, em determinado momento do final do século II.
Posteriormente, esses textos traduzidos foram, por sua vez, copiados
por copistas em suas regiões.4
Foram particularmente importantes para a história do texto as
traduções para o latim, porque grande parte dos cristãos no Ocidente
tinha o latim como sua língua principal. Mas logo começaram a surgir
problemas com as traduções latinas das escrituras, porque havia muitas
delas e essas traduções destoavam abertamente uma da outra. O
problema se tornou crucial no fim do século IV cristão, quando o papa
Dâmaso encomendou ao maior especialista daquele tempo, Jerônimo, a
produção de uma tradução latina “oficial”, que pudesse ser aceita por
todos os cristãos latino-falantes, em Roma e alhures, como um texto
oficial.
O próprio Jerônimo fala da superabundância de traduções
disponíveis e se dispõe a resolver pessoalmente o problema. Ao escolher
uma das melhores traduções latinas disponíveis e ao comparar seu texto
com manuscritos gregos superiores aos quais tinha acesso, Jerônimo
criou uma nova edição dos Evangelhos em latim. Pode ser que ele, ou
algum de seus discípulos, seja também responsável pela nova edição dos
outros livros do Novo Testamento em latim.5
Essa forma da Bíblia em latim — a tradução de Jerônimo — se
tornou conhecida como a Bíblia Vulgata (comum) da cristandade
latino-falante. Ela foi a Bíblia da Igreja ocidental, ela mesma copiada e
recopiada inúmeras vezes. Foi o livro que os cristãos leram, os
pesquisadores pesquisaram e os teólogos usaram durante séculos, até o
período moderno. Hoje há aproximadamente duas vezes mais cópias da
Vulgata latina do que manuscritos gregos do Novo Testamento.
A PRIMEIRA EDIÇÃO IMPRESSA DO NOVO TESTAMENTO GREGO
Como já foi dito aqui, o texto do Novo Testamento foi copiado de
forma razoavelmente padronizada no decorrer da Idade Média, tanto
no Oriente (o texto bizantino) como no Ocidente (a Vulgata latina). Só
com a invenção da imprensa no século XV, com Johannes Gutenberg
(1400/1468) é que tudo mudou em termos de reprodução de livros em
geral e dos livros da Bíblia em particular. Ao imprimir livros com tipos
móveis, podia-se garantir que toda página seria completamente
semelhante a toda outra página, sem variação de espécie alguma na
sequência das palavras. Foi-se a época em que cada copista poderia
produzir diferentes cópias do mesmo texto por meio de alterações
acidentais e intencionais. Estar impresso era como ser gravado em
pedra. Além disso, podiam-se fazer livros mais rapidamente: não havia
mais necessidade de copiar letra por letra.
Como consequência disso, os livros passaram a ser mais baratos.
Poucos acontecimentos tiveram um
impacto tão revolucionário no mundo moderno quanto a invenção da
imprensa. O outro acontecimento que se aproxima dessa invenção (e
que pode vir a ultrapassá-la em importância) é o advento do
computador pessoal.
A primeira grande obra a ser impressa na máquina de imprimir de
Gutenberg foi uma magnífica edição da Bíblia (Vulgata) latina, que
demorou de 1450 a 1456 para ser produzida.6 Na metade do século
seguinte, cerca de cinquenta edições da Vulgata foram produzidas por
várias casas impressoras da Europa.
Pode causar estranheza a ausência de impulso para produzir uma cópia
do Novo Testamento grego nesses
primeiros anos da imprensa. Mas o motivo disso não é difícil de ser
descoberto: é aquele que já mencionamos. Pesquisadores em toda a
Europa — incluindo pesquisadores da Bíblia — estavam acostumados
havia quase mil anos a pensar que a Vulgata de Jerônimo era Bíblia da
Igreja (assim como algumas igrejas modernas de fala inglesa consideram
que a King James Version é a “verdadeira” Bíblia). A Bíblia grega era
tida como estranha à teologia e ao aprendizado; no Ocidente latino, ela
era considerada como própria dos cristãos ortodoxos gregos,
considerados cismáticos que tinham desertado da verdadeira igreja.
Poucos pesquisadores na Europa Ocidental eram capazes de ler grego.
Desse modo, à primeira vista, ninguém tinha interesse em imprimir a
Bíblia grega.
O primeiro pesquisador ocidental a conceber a ideia de produzir
uma versão do Novo Testamento grego foi um cardeal espanhol
chamado Ximenes de Cisneros (1437-1517). Sob sua liderança, um
grupo de pesquisadores, inclusive um que se chamava Diego Lopez de
Zuñiga (Stunica), assumiu uma edição da Bíblia em vários tomos.
Tratava-se de uma edição poliglota, isto é, que reproduzia o texto da
Bíblia em várias línguas. Desse modo, o Antigo Testamento estava
representado pelo original hebraico, a Vulgata latina e a Septuaginta
grega lado a lado, dispostos em colunas. (A posição de privilégio
atribuída por esses editores à Vulgata pode ser vista em seus
comentários sobre essa organização do texto já no prefácio: eles a
comparavam a Cristo — representado pela Vulgata — sendo
crucificado entre dois criminosos, com os falsos judeus representados
pelo texto hebraico e os gregos cismáticos representados pela
Septuaginta.)
A obra foi impressa em uma cidade chamada Alcalá, cujo nome
latino é Complutum. Por esse motivo, a edição de Ximenes é conhecida
como a Poliglota Complutense. O volume do Novo Testamento foi o
primeiro a ser impresso (volume 5, completado em 1514). Ele continha
o texto grego e incluía um glossário grego com equivalentes latinos.
Mas não havia plano de publicar esse volume separadamente — todos
os seis volumes (o sexto incluía uma gramática hebraica e um
dicionário, para auxiliar na leitura dos volumes 1-4) deviam ser
publicados conjuntamente, e isso levou um tempo considerável. A obra
toda foi concluída, ao que parece, por volta de 1517; mas como era
uma produção católica, necessitava da aprovação do papa Leão X,
antes de poder ser publicada. A aprovação foi finalmente obtida em
1520, mas por conta de outras complicações, o livro não foi distribuído
até o ano de 1522, cerca de cinco anos depois da morte do próprio
Ximenes de Cisneros.
Como vimos, nessa época, havia centenas de manuscritos gregos
(isto é, cópias feitas à mão) disponíveis para as igrejas cristãs e os
pesquisadores no Oriente. Como foi, então, que Stunica e seus
companheiros editores decidiram quais desses manuscritos usar e, antes
disso, quais eram os manuscritos que realmente eram acessíveis a eles?
Infelizmente, essas são perguntas que os pesquisadores nunca foram
capazes de responder com segurança. Na dedicatória da obra, Ximenes
de Cisneros exprime sua gratidão ao papa Leão X pelas cópias gregas
“da Biblioteca Apostólica” que o papa lhe teria emprestado. Desse
modo, os manuscritos que serviram para a edição podem ter provindo
do acervo vaticano. Contudo, alguns especialistas suspeitam que foram
usados manuscritos localmente disponíveis. Cerca de duzentos e
cinquenta anos depois da produção da Complutum, um erudito
dinamarquês chamado Moldenhawer visitou Alcalá para vistoriar seus
recursos biblioteconômicos e para tentar elucidar essa questão, mas não
conseguiu encontrar nenhum manuscrito do Novo Testamento grego.
Como continuou a suspeitar de que a biblioteca tinha de ter tido alguns
manuscritos em algum momento, ele insistiu nas investigações, até que
um bibliotecário ao final lhe disse que a biblioteca realmente tivera
antigos manuscritos gregos do Novo Testamento, mas que em 1749
todos tinham sido vendidos a um fabricante de rojões chamado Toryo
“como pergaminhos inúteis” (mas adequados para fabricar fogos de
artifício).
Estudiosos posteriores tentaram desacreditar esse relato,7 mas ele
demonstra, pelo menos, que o estudo dos manuscritos gregos do Novo
Testamento não está reservado apenas a gênios.
A PRIMEIRA EDIÇÃO PUBLICADA DO NOVO TESTAMENTO GREGO
Embora a Poliglota Complutense tenha sido a primeira edição impressa
do Novo Testamento grego, ela não foi a primeira versão publicada.
Como vimos, a Complutum foi impressa por volta de 1514, mas só veio
a lume realmente em 1522. Entre essas duas datas, um pesquisador
holandês empreendedor, o intelectual humanista Desidério Erasmo,
produziu e publicou uma edição do Novo Testamento grego, passando
a merecer a honra de ter editado a assim chamada editio princeps
(primeira edição publicada). Erasmo estudou o Novo Testamento,
juntamente com outras grandes obras da Antiguidade, sem
regularidade, durante muitos anos e, a certo ponto, pensou em juntar
tudo e imprimir uma edição, mas só quando visitou Basileia, em agosto
de 1514, foi convencido por um editor chamado Johann Froben a seguir
em frente.
Tanto Erasmo como Froben sabiam que a Poliglota Complutense
estava em preparação e por isso se apressaram a publicar um texto
grego o mais rapidamente possível, embora outras obrigações
impedissem Erasmo de assumir de fato a tarefa antes de julho de 1515.
Nessa época, ele foi a Basileia em busca de manuscritos utilizáveis, que
pudesse usar como base para seu texto. Não descobriu uma grande
fartura de manuscritos, mas o que encontrou foi o suficiente para a
tarefa. No mais das vezes, ele se fiou em um punhado de manuscritos
medievais tardios, que rabiscou como se estivesse editando e corrigindo
uma cópia manuscrita para o impressor; o impressor tomou os
manuscritos com essas emendas e fez a matriz diretamente deles.
Tudo indica que Erasmo baseou-se principalmente em apenas um
manuscrito do século XII para os Evangelhos e em outro, também do
século XII, para o livro dos Atos e as Epístolas — embora pudesse ter
consultado vários outros manuscritos e feito correções a partir de suas
leituras. Para o livro do Apocalipse, teve de tomar emprestado um
manuscrito de seu amigo, o humanista alemão Johannes Reuchlin.
Infelizmente, esse manuscrito apresentava passagens quase impossíveis
de ler e, ainda por cima, não tinha a última página, que devia conter os
seis versículos finais do livro. Em sua pressa de concluir o trabalho,
nessas passagens, Erasmo simplesmente lançou mão da Vulgata latina e
retraduziu o texto latino para o grego, gerando com essa atitude
algumas glosas textuais que hoje não se encontram em nenhum
manuscrito grego subsistente.
E a dele é, como veremos, a edição do
Novo Testamento grego que, para todos os propósitos práticos, foi
usada pelos tradutores da Bíblia King James quase um século mais
tarde.
A impressão da edição de Erasmo teve início em outubro de 1515 e
foi concluída apenas cinco meses depois. A edição inclui, lado a lado, o
texto grego coligido às pressas e uma versão revisada da Vulgata latina
(a partir da segunda edição, em todas as edições posteriores, Erasmo
incluiu sua própria tradução latina do texto em lugar da Vulgata, para
grande consternação de muitos teólogos da época, que ainda
consideravam a Vulgata “a” Bíblia da Igreja). O livro era bastante
volumoso, com quase mil páginas. Mesmo assim, como o próprio
Erasmo disse mais tarde, ele, “em vez de ser editado, saiu
precipitadamente” (sua frase em latim é: praecipitatum verius quam
editum).
É importante reconhecer que a edição de Erasmo foi a editio
princeps do Novo Testamento grego não apenas porque representa um
ponto histórico importante, mas acima de tudo porque, à medida que a
história do texto se desenvolveu, as edições de Erasmo (ele fez cinco,
todas baseadas, em última instância, na primeira edição feita às pressas)
tornaram-se a forma-padrão do texto grego que passou a ser publicado
pelos impressores europeus ocidentais durante mais de trezentos anos.
Seguiram-se numerosas edições gregas, produzidas por impressores
cujos nomes são bem conhecidos pelos pesquisadores do assunto:
Stephanus (Robert Estienne), Teodoro Beza, Boaventura e Abraão
Elzevir. Contudo, todos esses textos, de um modo ou de outro baseados
nos textos de seus predecessores, remontam ao texto de Erasmo, com
todas as suas falhas, por ter sido feito a partir de uns poucos
manuscritos (por vezes, dois ou até mesmo um — ou, em partes do
Apocalipse, nenhum!) que foram produzidos relativamente tarde no
período medieval.
Os impressores, em sua maioria, não foram atrás de
novos manuscritos que pudessem ser mais antigos e melhores, para
estabelecerem seus textos. Em vez disso, simplesmente imprimiram e
reimprimiram o mesmo texto, fazendo apenas ajustes menores.
Algumas dessas edições são, seguramente, importantes. Por exemplo,
a terceira edição de Stephanus, de 1550, se destaca por ser a primeira
edição a incluir notas para documentar diferenças entre alguns dos
manuscritos consultados; sua quarta edição (1551) pode ser
considerada ainda mais importante, por ser a primeira edição do Novo
Testamento grego a dividir o texto em versículos. Até então, o texto
fora impresso todo junto, sem nenhuma indicação de divisão em
versículos.
Há uma anedota divertida associada ao modo como
Stephanus fez o seu trabalho nessa edição. Seu filho contou mais tarde
que ele se decidira pela divisão em versículos (em grande parte seguida
pelas traduções modernas) enquanto viajava a cavalo. Sem dúvida, ele
quis dizer que seu pai “trabalhava durante o trajeto” — ou seja, que ele
introduzia no texto os números de versículos à noite, nas hospedarias
em que parava. Mas visto que o filho de Stephanus diz literalmente que
o pai fez essas mudanças “no lombo do cavalo”, alguns observadores
tendenciosos sugeriram que ele realmente fez sua obra em trânsito, de
modo que a cada vez que seu cavalo dava um solavanco, a pena de
Stephanus pulava, sendo esse o motivo da sequência típica dos
versículos que hoje encontramos em nossas traduções do Novo
Testamento.
O ponto mais abrangente a que me refiro, contudo, é que todas essas
edições posteriores — inclusive a de Stephanus — remontam, em última
instância, à editio princeps de Erasmo, por sua vez baseada em alguns
manuscritos gregos mais ou menos tardios e não necessariamente
confiáveis — aqueles que ele por acaso encontrou em Basileia e um que
tomou emprestado de seu amigo Reuchlin. Não há motivo para pensar
que esses manuscritos, particularmente, apresentassem um alto nível de
qualidade. Tratava-se simplesmente daqueles de que ele pôde lançar
mão.
Disso tudo se depreende que esses manuscritos não eram de
qualidade superior, porque, em última instância, foram produzidos mais
ou menos mil e cem anos depois dos originais! Por exemplo, o principal
manuscrito que Erasmo usou para os Evangelhos continha tanto a
narrativa da mulher flagrada em adultério quanto os últimos doze
versículos de Marcos, passagens que originalmente não faziam parte dos
Evangelhos, como aprendemos no capítulo anterior.
Havia, contudo, uma passagem-chave das Escrituras que os
manuscritos-fonte de Erasmo não continham: trata-se do relato de
1João 5:7-8, que os pesquisadores chamaram de “o parêntese joanino”,
encontrado nos manuscritos da Vulgata latina, mas não na vasta
maioria dos manuscritos gregos, uma passagem que foi, por muito
tempo, a predileta entre os teólogos cristãos, dado que é a única
passagem na Bíblia inteira que delineia explicitamente a doutrina da
Trindade, segundo a qual há três pessoas na divindade, com todas as
três constituindo um só Deus.
Na Vulgata, a passagem é lida assim:
Há três que conduzem o testemunho nos céus: o Pai, o Verbo e o
Espírito, e esses três são um; e há três que conduzem o testemunho
na terra, o Espírito, a água e o sangue, e esses três são um.
Trata-se de uma passagem misteriosa, mas inequívoca em seu apoio
aos ensinamentos tradicionais da igreja sobre o “Deus trino que é um”.
Sem esse versículo, a doutrina da Trindade deve ser inferida de uma
série de passagens combinadas para mostrar que Cristo é Deus, assim
como o Espírito e o Pai, e que há, não obstante, um só Deus. Essa
passagem, por seu turno, afirma a doutrina direta e sucintamente.
Mas Erasmo não a achou em seus manuscritos gregos, nos quais
simplesmente se lê: “Pois há três que dão testemunho: o Espírito, a água
e o sangue, e esses três são um”. Para onde foram “o Pai, o Verbo e o
Espírito”? Eles não figuravam no manuscrito primário de Erasmo, nem
em nenhum dos demais que ele consultou. Por isso, naturalmente, ele os
deixou de fora de sua primeira edição do texto grego.
Foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que tirou do sério os
teólogos de seu tempo, que acusaram Erasmo de adulterar o texto,
numa tentativa de eliminar a doutrina da Trindade e de desvalorizar o
seu corolário, a doutrina da divindade plena de Cristo. Particularmente
Stunica, um dos editores-chefes da Poliglota Complutense, veio a
público desacreditar Erasmo e insistir em que, em edições futuras, ele
restituísse o versículo a seu lugar correto.
Com o desenrolar dos fatos, Erasmo — provavelmente em um
momento de descuido — concordou em inserir o versículo em uma
futura edição de seu Novo Testamento grego, sob uma condição: que
seus adversários produzissem um manuscrito grego no qual o verso
pudesse ser encontrado (achá-lo nos manuscritos latinos não era o
bastante). Dessa forma, produziu-se um manuscrito grego. Na
realidade, ele foi produzido nessa ocasião. Parece que alguém copiou o
texto grego das epístolas e, quando chegou à passagem em questão,
traduziu o texto latino para o grego, dando o parêntese joanino em sua
forma teologicamente aproveitável, familiar. O manuscrito
providenciado para Erasmo era, em outras palavras, uma produção do
século XVI, feita sob encomenda.
Não obstante suas apreensões, Erasmo manteve a palavra e incluiu o
parêntese joanino na próxima e em todas as edições de seu Novo
Testamento grego a partir de então. Tais edições, como já ressaltei,
tornaram-se a base para as edições do Novo Testamento grego que
eram, à época, reproduzidas de tempos em tempos segundo as
preferências de Stephanus, Beza e dos Elzevires. Essas edições
estabeleceram a forma do texto que os tradutores da Bíblia King James
por fim usaram. E passagens tão familiares aos leitores da Bíblia — da
King James, de 1622 em diante, até as modernas edições do século XX
— incluem a mulher flagrada em adultério, os últimos doze versículos
de Marcos e o parêntese joanino, mesmo que nenhuma delas possa ser
encontrada nos manuscritos superiores e mais antigos do Novo
Testamento grego. Elas entraram na corrente de consciência dos leitores
da Bíblia por mero acaso da história, por causa dos manuscritos a que
Erasmo por acaso teve acesso e em um que foi feito sob encomenda
para ele.
As várias edições gregas dos séculos XVI e XVII eram tão
semelhantes que, por fim, os impressores começaram a afirmar que elas
eram o texto universalmente aceito por todos os pesquisadores e leitores
do Novo Testamento grego — e realmente eram, dado que não havia
discordância! A mais citada constatação encontra-se em uma edição
produzida em 1633 por Abraão e Boaventura Elzevir (que eram tio e
sobrinho), na qual eles dizem a seus leitores, em termos que desde então
se tornaram célebres entre pesquisadores, que “vocês agora têm o texto
que é aceito por todos, no qual nada alteramos nem corrompemos”.8 O
fraseado desta afirmação, especialmente as palavras “texto que é aceito
por todos”, gerou a expressão comum Textus Receptus
(abreviadamente TR), usada pela crítica textual para se referir à forma
do texto grego baseada não nos manuscritos mais antigos e melhores,
mas na forma do texto originalmente publicado por Erasmo e difundido
pelos impressores durante mais de trezentos anos, enquanto os
pesquisadores do texto bíblico não começassem a insistir em que o
Novo Testamento grego devia ser estabelecido a partir de princípios
científicos baseados em nossos mais antigos e melhores manuscritos,
não simplesmente reimpresso segundo o costume. Foi a forma textual
inferior do Textus Receptus que se tornou a base das traduções inglesas
mais antigas, incluindo a Bíblia King James e outras edições até quase o
final do século XIX.
O APARATO CRÍTICO DE MILL PARA O NOVO TESTAMENTO GREGO
Para muitos pesquisadores que tinham acesso às edições impressas
durante os séculos XVI e XVII, o texto do Novo Testamento grego,
então, parecia estar em posição segura. Afinal de contas, quase todas as
edições tinham praticamente o mesmo texto. De vez em quando, porém,
os pesquisadores se dedicavam a descobrir e a divulgar que os
manuscritos gregos apresentavam variação em relação ao texto
habitualmente impresso. Vimos que Stephanus, em sua edição de 1550,
incluiu notas à margem para identificar lugares de variação entre vários
manuscritos que examinara (14 ao todo). Algum tempo depois, no
século XVII, pesquisadores ingleses, como Brian Walton e John Fell,
publicaram edições nas quais se levavam mais a sério as variações entre
os manuscritos subsistentes aos quais se tinha acesso. Mas quase
ninguém se deu conta da enormidade do problema da variação textual,
até a publicação pioneira, em 1707, de um dos clássicos no campo da
crítica textual do Novo Testamento, um livro que teve o efeito de um
cataclismo sobre o estudo da transmissão do Novo Testamento grego,
abrindo as comportas que forçaram os pesquisadores a encarar com
mais seriedade a situação textual dos manuscritos do Novo
Testamento.9
Trata-se da edição do Novo Testamento grego de John Mill,
membro do Queens College, Oxford. Mill investiu trinta anos de
trabalho árduo para reunir os materiais para sua edição. O texto que ele
imprimiu foi simplesmente a edição de 1550 de Stephanus. Mas o que
chamou a atenção na publicação de Mill não foi o texto que ele usou,
mas as glosas variantes desse texto que ele citava no aparato crítico.
Mill teve acesso às glosas de cerca de cem manuscritos gregos do Novo
Testamento. Além disso, examinou cuidadosamente os escritos dos pais
da Igreja primitiva para ver como eles citavam o texto — na hipótese de
alguém poder reconstruir os manuscritos utilizados por esses pais pelo
exame de suas citações. Além do mais, mesmo não podendo ler muitas
das outras línguas antigas, à exceção do latim, ele usou uma edição
antiga publicada por Walton para ver onde as antigas versões em
línguas como o siríaco e o copta diferiam do grego.
Com base nesse intenso esforço de trinta anos para acumular
materiais, Mill publicou seu texto com aparato crítico, no qual indicava
lugares de variação entre todos os materiais subsistentes a que teve
acesso. Para abalo e assombro de muitos de seus leitores, o aparato
crítico de Mill isolava cerca de trinta mil lugares de variação entre os
testemunhos subsistentes, trinta mil lugares onde manuscritos diversos,
citações patrísticas (dos pais da Igreja) e versões liam de modo diferente
passagens do Novo Testamento.
Mill não foi exaustivo em sua apresentação dos dados que coligiu.
Na verdade, encontrara muito mais que trinta mil lugares de variação.
Ele não citou tudo o que descobrira, deixando de lado variações como
as que envolvem mudanças da ordem dos termos na frase.
Também
deixou de lado os lugares que notou serem capazes de afastar o público
leitor da complacência na qual se encontrava, baseada na constante
republicação do Textus Receptus e na suposição de que se tinha no TR
o grego “original” do Novo Testamento. Atualmente, o status de texto
original foi lançado em aberta disputa. Se alguém não sabe quais são as
palavras originais do Novo Testamento grego, como pode usar tais
palavras para decidir qual o ensinamento e doutrina cristãos corretos?
A CONTROVÉRSIA CRIADA PELO APARATO CRÍTICO DE MILL
O impacto da publicação de Mill foi imediatamente sentido, embora ele
mesmo não tenha vivido para ver o drama se desenrolar. Ele morreu,
vítima de derrame, apenas a duas semanas de sua grande obra ser
publicada. Apesar disso, sua morte repentina (atribuída por um
observador ao fato de Mill “ter bebido café demais”!) não impediu os
detratores de partirem para o ataque. O ataque mais mordaz veio três
anos mais tarde, em um volume bastante erudito de um controversista
chamado Daniel Whitby, que, em 1770, publicou um conjunto de notas
sobre a interpretação do Novo Testamento, ao qual acrescentou um
apêndice de cem páginas, no qual examinava, em pormenor, as
variantes citadas por Mill em seu aparato. Whitby era um teólogo
protestante conservador, cuja visão básica era a de que ainda que Deus
não tivesse evitado que os erros grassassem nas cópias que os copistas
fizeram do Novo Testamento, ele nunca permitiria que o texto se
tornasse tão corrompido (isto é, alterado) a ponto de não poder atingir
adequadamente sua intenção e desígnio divinos. Por isso, ele lamenta:
“Portanto, ofende-me e me aborrece ter encontrado tanta coisa nos
prolegômenos de Mill que parece capaz de trazer insegurança ao padrão
da fé, ou pelo menos dar a outros muitos bons motivos para
duvidar”.10
Whitby chega a sugerir que os pesquisadores católicos romanos —
aos quais chama “os papistas” — ficariam todos muito felizes se
passassem a poder provar, com base na insegurança dos fundamentos
do texto grego do Novo Testamento, que as Escrituras não eram
autoridade suficiente para a fé — isto é, que a autoridade da igreja é
superior. Nas palavras dele: “Morinus [um pesquisador católico]
defende a depreciação do Texto Grego, o que tornaria a autoridade do
Texto Grego incerta a partir da multiplicidade de variantes que ele
encontrou no Testamento grego de R. Stephens [Stephanus]; que vitória
não alcançarão então os papistas sobre o mesmo texto quando virem as
variantes quadruplicadas por Mill, depois do tanto que ele suou em
trinta anos de trabalho?”11 Whitby segue argumentando que, de fato, o
texto do Novo Testamento é seguro, dado que raramente alguma
variante citada por Mill diz respeito a um artigo de fé ou a uma questão
de conduta e afirma que a grande maioria das variantes de Mill não tem
declaração de autenticidade.
Whitby parecia querer que sua refutação provocasse efeito sem que
ninguém realmente a lesse, porque se tratava de cem páginas túrgidas,
densas, desagradáveis, de argumentação cerrada, que tenta chegar ao
objetivo simplesmente pela massa acumulada de sua refutação.
A defesa de Whitby bem que poderia ter atingido o objetivo se não
tivesse passado a ser usada por aqueles que usavam as trinta mil
passagens de variação de Mill exatamente para o propósito que Whitby
temia, para defender que não se podia confiar no texto da Escritura
porque ele era, em si, muito incerto.
Destaque entre aqueles que
defendiam essa posição teve o deísta inglês Anthony Collins, amigo e
seguidor de John Locke, que, em 1713, escreveu um panfleto intitulado
Reply to a Treatise of Free Thinking (Discurso sobre o livrepensamento).
A obra era um produto típico do pensamento deísta de
inícios do século XVIII: defendia a primazia da lógica e da
demonstração sobre a revelação (presente, por exemplo, na Bíblia) e a
possibilidade do milagre. Na seção 2 da obra, que trata de “questões
religiosas”, Collins observa, em meio a muitas outras coisas, que até
mesmo o clero cristão (isto é, Mill) “reconheceu e trabalhou para
provar que o Texto da Escritura é precário”, fazendo referência às
trinta mil variantes de Mill.
O panfleto de Collins, que se tornou muito lido e exerceu grande
influência, provocou certo número de respostas pontuais, muitas delas
obtusas e penosas, algumas outras eruditas e indignadas.
Compreensivelmente, seu mais significativo resultado foi ter envolvido
na disputa um especialista de grande reputação internacional, o mestre
do Trinity College, de Cambridge, Richard Bentley. Bentley é renomado
por sua obra sobre autores clássicos como Homero, Horácio e Terêncio.
Em uma réplica tanto a Whitby como a Collins, escrita sob o
pseudônimo de Filelêutero Lipsiense (que significa algo como “o amante
da liberdade que vem de Leipzig [Lípsia]” — uma alusão óbvia ao apelo
de Collins ao “livre-pensamento”), Bentley chama a atenção para o
ponto óbvio de que as variantes que Mill acumulou não tornariam
inseguros os fundamentos da fé protestante, visto que tais variantes
existiam mesmo antes de Mill tê-las notado. Ele não as inventou; apenas
chamou a atenção sobre elas.
[S]e formos dar crédito não apenas a esse douto Autor [Collins], mas
a um Doutor, por própria conta, ainda mais douto [Whitby], Ele
[Mill] labutou todo esse tempo, para provar que o Texto das
Escrituras é precário… Mas exatamente contra que seu Whitbyus
tanto ataca e grita? A Labuta do Doutor, diz ele, torna todo o texto
precário; e expõe tanto a Reforma aos Papistas, como a própria
Religião aos Ateístas. Deus nos livre! Esperamos coisas melhores.
Certamente essas Leituras Variantes existiam antes em vários
Exemplares; Dr. Mill não as fez e cunhou, apenas as exibiu a nossa
Visão. Se, portanto, a Religião era verdadeira antes, mesmo com a
existência de tais Leituras Variantes, ela continuará a ser verdadeira
e, consequentemente, ainda estará a salvo, embora todos as vejam.
Contemos com isso; nenhuma Verdade, nenhuma matéria de
Costume convenientemente exposta pode chegar a subverter a
verdadeira Religião.12
Bentley, um especialista nas tradições textuais dos clássicos,
continua, explicando que é claro que se pode esperar encontrar uma
multiplicidade de variantes textuais sempre que se descobre um grande
número de manuscritos. Se houvesse apenas um manuscrito de uma
obra, não haveria variantes textuais. Contudo, assim que um segundo
manuscrito é localizado, ele diferirá do primeiro em várias passagens.
Isso, porém, não é ruim, visto que as versões variantes mostrarão onde
o primeiro manuscrito preservou um erro. Acrescente um terceiro
manuscrito, e você encontrará versões variantes adicionais, mas também
passagens adicionais, como resultado, onde o texto original é
preservado (isto é, onde os dois primeiros manuscritos concordam em
um erro). E assim por diante — quanto mais manuscritos forem
descobertos, mais versões variantes; mas também quanto mais
semelhanças forem descobertas entre essas versões variantes, mais
provável será alguém descobrir o texto original. Portanto, as trinta mil
variantes descobertas por Mill não depreciam a integridade do Novo
Testamento; elas simplesmente fornecem os dados de que os
pesquisadores necessitam para trabalhar no estabelecimento do texto,
um texto que é muito mais amplamente documentado do que qualquer
outro do mundo antigo.
Como veremos no próximo capítulo, essa controvérsia gerada pela
publicação de Mill, por fim, levará Bentley a dedicar todas as suas
poderosas habilidades intelectuais ao problema do estabelecimento do
mais antigo texto do Novo Testamento ao qual se pode ter acesso. Mas
antes de nos embrenhar nessa discussão, talvez devamos dar um passo
atrás e examinar onde nos situamos hoje com relação à espantosa
descoberta de Mill de trinta mil variantes na tradição manuscrita do
Novo Testamento.
NOSSA SITUAÇÃO ATUAL
Enquanto Mill tomou conhecimento ou examinou cerca de cem
manuscritos gregos para descobrir suas trinta mil variantes, hoje temos
conhecimento de muitas, muitas mais. Os últimos cálculos indicam que
mais de cinco mil e setecentos manuscritos gregos foram descobertos e
catalogados. É quinhentas e setenta vezes mais do que os cem
manuscritos que Mill conhecia em 1707. Esses cinco mil e setecentos
incluem de tudo, desde o menor dos fragmentos de manuscritos — do
tamanho de um cartão de crédito — até produções bem maiores e
excelentes, preservadas em sua totalidade. Alguns deles contêm apenas
um livro do Novo Testamento; outros contêm uma pequena coleção
(por exemplo, os quatro Evangelhos ou as cartas de Paulo); poucos são
os que contêm o Novo Testamento inteiro.13 Por outro lado, há muitos
manuscritos das várias versões (traduções) primitivas do Novo
Testamento.
Esses manuscritos se distribuem no tempo do início do século II (um
fragmento pequeno chamado P52, que registra vários versículos de João
18) até o século XVI.14 O tamanho deles varia muito: alguns são
pequenas cópias que caberiam na palma da mão, como uma cópia copta
do Evangelho de Mateus, chamada códice Scheide, que mede 11x13,7
centímetros; outros são cópias muito maiores e impressionantes, dentre
as quais podemos citar o já mencionado Códice Sinaítico, que mede
38,1x34,2 centímetros e ocupa um bom espaço quando completamente
aberto. Alguns desses manuscritos são baratos, cópias produzidas às
pressas; alguns chegam até a ser copiados em páginas usadas (quando
um documento foi apagado e o texto do Novo Testamento foi escrito
por sobre as páginas apagadas); outros são cópias magníficas e caras,
incluindo algumas escritas em pergaminhos púrpura com tinta de prata
ou de ouro.
Em geral, os pesquisadores falam de quatro tipos de manuscritos
gregos: 15
a) Os mais antigos são os manuscritos papyrus, escritos em material
manufaturado do junco de papiro, um material de escrita
valorizado, mas barato e eficiente no mundo antigo; eles datam de
uma época que vai do século II ao século VII.
b) Os manuscritos unciais (caixa alta) são feitos de pergaminho (pele
de animais, às vezes, chamado de velino), cujo nome vem das letras
grandes, semelhantes a nossas maiúsculas, que eram usadas; eles
datam, em sua maioria, de uma época que vai do século IV ao século
IX.
c) Manuscritos minúsculos (caixa baixa) também são feitos em
pergaminho, mas são escritos em letras menores, frequentemente
combinadas (sem que a pena seja levantada da página) com algo que
se assemelha ao equivalente grego da escrita cursiva; esses datam do
século IX em diante.
d) Lecionários geralmente se apresentam em forma minúscula, mas
em vez de consistir em livros do Novo Testamento, contêm, numa
ordem estabelecida, “leituras” tiradas do Novo Testamento para
serem usadas semanalmente na igreja ou em cada dia santo (como os
lecionários usados hoje nas igrejas).
Além desses manuscritos gregos, temos conhecimento de cerca de
dez mil manuscritos da Vulgata latina, sem falar nos manuscritos de
outras versões, como a Siríaca, a Copta, a Armênia, a Vétero-georgiana,
a da igreja Eslava, e assim por diante (lembremos que Mill só teve
acesso a poucas das versões antigas e apenas por meio de suas traduções
latinas). Em acréscimo, temos os escritos de pais da Igreja como
Clemente de Alexandria, Orígenes e Atanásio, entre os gregos;
Tertuliano, Jerônimo e Agostinho, entre os latinos — todos com
citações dos textos do Novo Testamento em muitas passagens, o que
possibilita reconstituir o que devem ter sido os manuscritos (atualmente
perdidos em sua maioria) que utilizavam.
Com tamanha profusão de indícios, qual será o total de variantes
atualmente conhecidas? Os pesquisadores fazem estimativas muito
discordantes — alguns falam de duzentas mil variantes conhecidas,
outros de trezentas mil, alguns falam de quatrocentas mil, ou mais! Mas
não se tem certeza, porque, apesar dos impressionantes avanços da
informática, ainda não houve quem fosse capaz de contar todas. Talvez,
como eu já disse, seja melhor falar em termos comparativos. Há mais
variações entre os nossos manuscritos que palavras no Novo
Testamento.
TIPOS DE MUDANÇAS EM NOSSOS MANUSCRITOS
Se é problemático falar da quantidade de mudanças que ainda
persistem, que dizer dos tipos de mudanças encontradas nesses
manuscritos? Geralmente, os pesquisadores hoje distinguem mudanças
que parecem ter sido inseridas acidentalmente por causa de erros dos
copistas e alterações intencionalmente feitas, com premeditação. Essas
não são, evidentemente, fronteiras inflexíveis e fixas, mas mesmo assim
parecem ser bem apropriadas: qualquer pessoa pode compreender que
um copista, sem perceber, deixou de fora uma palavra enquanto
copiava um texto (uma mudança acidental), mas é difícil compreender
como os doze últimos versículos de Marcos poderiam ser acrescentados
por causa de um escorregão da pena.
Por isso, parece bastante proveitoso encerrar este capítulo com
alguns exemplos desses dois tipos de mudança. Começarei indicando
alguns tipos de variantes “acidentais”.
Mudanças acidentais
Deslizamentos acidentais da pena16 eram, sem dúvida, potencializados
pelo fato de os manuscritos gregos serem todos redigidos em scriptuo
continua — sem pontuação, na maioria dos casos, ou até mesmo sem
espaço entre as palavras. Isso significa que palavras muito semelhantes
entre si eram frequentemente tomadas uma pela outra. Por exemplo, em
1Coríntios 5:8, Paulo diz a seus leitores que eles deviam tomar parte do
Cristo, o cordeiro pascal, e que não deviam comer o “fermento velho, o
fermento de maldade e de perversidade”. A última palavra,
perversidade, em grego é poneras, que, como se pode ver, é muito
semelhante ao termo grego para “imoralidade sexual”, porneias. A
diferença de sentido pode não ser lá muito grande, mas o chocante é
que em alguns manuscritos subsistentes Paulo exorta explicitamente não
contra a perversidade em geral, mas contra o vício sexual em particular.
Esse tipo de erro de ortografia se tornou ainda mais constante pelo
fato de os copistas às vezes abreviarem determinadas palavras para
ganhar tempo ou espaço. A palavra grega para “e”, por exemplo, é kai,
e alguns copistas simplesmente escreviam a letra inicial, k, com um tipo
de perninha no fim para indicar que se tratava de uma abreviação.
Outras abreviações muito comuns envolviam o que os pesquisadores
chamaram de nomina sacra (nomes sagrados), um grupo de palavras
como Deus, Cristo, Senhor, Jesus e Espírito, que vinham abreviadas ou
porque ocorriam muito frequentemente ou para mostrar que elas
deviam ser objeto de atenção especial. Por vezes, essas várias
abreviaturas levavam copistas posteriores a uma espécie de confusão,
porque eles confundiam uma com outra ou tomavam uma abreviatura
por uma palavra inteira. Por exemplo, em Romanos 12:11, Paulo
exorta seu leitor a “servir ao Senhor”. Mas a palavra Senhor, kuriow,
geralmente era abreviada nos manuscritos como kw (com uma linha em
cima), o que levou alguns copistas antigos a entendê-la como
abreviatura de kairw, que significa “tempo”. Desse modo, nesses
manuscritos, Paulo exorta seus leitores a “servirem ao tempo”.
De modo semelhante, em 1 Coríntios 12:13, Paulo mostra que todos
foram, em Cristo, “batizados em um só corpo” e todos “beberam de
um só Espírito”. A palavra Espírito (pneuma) fora abreviada como
pma, que também poderia ser — e foi — mal-entendida por alguns
copistas como o termo grego para “bebida” (poma); desse modo, Paulo
surge nesse texto indicando que todos “beberam da mesma bebida”.
Um tipo muito comum de erro nos manuscritos gregos ocorria
quando duas linhas do texto que se estava copiando acabavam com as
mesmas letras ou as mesmas palavras. Um copista copiava a primeira
linha do texto e depois, quando seu olho voltava para a página, caía nas
mesmas palavras, mas na linha de baixo, em vez de cair na linha que
acabara de copiar; ele continuava a copiar dali e, como resultado disso,
saltava as palavras ou linhas do trecho que ignorara. Esse tipo de erro é
chamado de periblesis (um “pulo do olho”) provocado por
homoeoteleuton (os “mesmos fins”). Digo a meus alunos que eles só
podem dizer que passaram pelo ensino superior quando puderem falar
inteligentemente sobre periblesis provocadas por homoeoteleuton.
O texto de Lucas 12:8-9 é um bom exemplo de como isso funciona.
O texto é o seguinte:
8Todo aquele que me confessa diante dos humanos, o filho do
homem confessará perante os anjos de Deus
9Mas todo aquele que me nega diante dos humanos serão negados
perante os anjos de Deus.
Nosso mais antigo papiro manuscrito da passagem deixa de fora
todo o versículo 9; e não é difícil perceber como o erro foi cometido. O
copista copiou as palavras “perante os anjos de Deus” no versículo 8 e
quando seu olho voltou à página, caiu sobre as mesmas palavras do
versículo 9 e pensou que fossem as palavras que acabara de copiar —
dessa forma, ele avançou para copiar o versículo 10, deixando de fora o
versículo 9 inteiro.
Em algumas ocasiões, esse tipo de erro pode ter consequências ainda
mais desastrosas para o sentido de um texto. Em João 17:15, por
exemplo, Jesus diz em sua oração a Deus acerca de seus seguidores:
Não peço que os guardeis do mundo, mas que os guardeis do
maligno.
Em um de nossos melhores manuscritos (o Códice Vaticano, do
século IV), as palavras “mundo… do” estão omitidas, de modo a fazer
Jesus enunciar a infeliz oração “não peço que os guardeis do maligno”!
Por vezes, erros acidentais são cometidos não porque as palavras
pareçam semelhantes, mas porque soam semelhantes. Isso deve ter
acontecido, por exemplo, quando um copista copiava um texto que lhe
estivesse sendo ditado — quando um copista lia um manuscrito e um ou
mais copistas copiavam as palavras em novos manuscritos, como às
vezes acontecia nos scriptoria posteriores ao século IV. Se duas palavras
eram homófonas, o copista que estivesse copiando podia, sem perceber,
optar pela palavra errada em sua cópia, especialmente se ela fizesse
sentido [errado]. Isso parece ter ocorrido, por exemplo, em Apocalipse
1:5, onde o autor ora àquele que “nos livrou de nossos pecados”. O
termo grego para “livrou” (lusanti) soa exatamente como o termo para
“lavou” (lousanti). Portanto, não é de surpreender que em certo número
de manuscritos medievais o autor ore àquele que “nos lavou de nossos
pecados”.
Temos outro exemplo na carta de Paulo aos Romanos, onde Paulo
afirma que “visto que fomos justificados pela fé, temos paz com Deus”
(Romanos 5:1). Mas foi isso mesmo o que ele disse? O termo grego
para “temos paz”, uma afirmação de fato, soa exatamente como o
termo para “permita-nos ter a paz”, uma exortação. Por isso, em
expressivo número de manuscritos, incluindo alguns dos mais antigos,
Paulo não afirma que ele e seus seguidores têm paz com Deus, ele incita
a si e aos outros a buscar a paz. Essa é uma passagem cujo sentido
correto os pesquisadores textuais têm dificuldade em decidir.17
Em outros casos, há menos ambiguidade, porque a mudança textual,
mesmo sendo compreensível, realmente não faz sentido. Isso acontece
muito, quase sempre por uma ou outra das razões que vimos
discutindo. Exemplo disso é João 5:39, onde Jesus diz a seus adversários
para “perscrutar as Escrituras… porque elas dão testemunho de mim”.
Em um manuscrito antigo, o verbo final foi mudado para outro que soa
parecido, mas que não faz sentido algum no contexto. Nesse
manuscrito, Jesus fala para “perscrutar as Escrituras… porque elas
estão pecando contra mim!” Um segundo exemplo vem do livro do
Apocalipse, quando o profeta tem uma visão do trono de Deus, em
torno do qual “havia um arco-íris que parecia uma esmeralda” (4:3).
Em alguns de nossos manuscritos primitivos, há uma mudança pela
qual, por mais estranho que pareça, é dito que em torno do trono
“havia sacerdotes que pareciam uma esmeralda!”
Dentre os muitos milhares de erros acidentais introduzidos em
nossos manuscritos, provavelmente o mais esquisito seja o que ocorre
em um minúsculo dos quatro Evangelhos oficialmente numerado como
o 109, produzido no século IV.18 Seu erro peculiar ocorre em Lucas,
capítulo 3, na narrativa da genealogia de Jesus. O copista estava,
claramente, copiando um manuscrito que trazia a genealogia em duas
colunas. Por algum motivo, ele não copiou uma coluna por vez, mas foi
copiando de uma e de outra. Como resultado, os nomes da genealogia
são jogados desordenadamente, com muitas pessoas sendo classificadas
como filhas do pai errado. Pior ainda, a segunda coluna do texto que o
copista estava copiando não tinha muitas linhas, nem mesmo a
primeira, de modo que, na cópia que o copista fez, o pai da raça
humana (isto é, o último nome mencionado) não é Deus, mas uma
israelita chamado Fares; e o próprio Deus aparece como sendo filho de
um homem chamado Aram!
Mudanças intencionais
De certo modo, as mudanças que vimos antes são mais fáceis de
localizar e de eliminar quando se está tentando estabelecer a forma mais
primitiva do texto. Mudanças intencionais tendem a ser um pouco mais
difíceis. Exatamente porque (evidentemente) feitas de propósito, essas
mudanças tendem a fazer sentido. E dado que fazem sentido, sempre
haverá críticos que defendem que elas fazem o melhor sentido — ou
seja, são originais. E não se trata de uma disputa entre pesquisadores
que acham que o texto foi alterado e outros que acham que não foi.
Todos sabem que o texto foi mudado; a verdadeira questão é qual
variante representa a alteração e qual representa a forma mais primitiva
do texto a que se pode remontar. É aqui que os pesquisadores, por
vezes, não chegam a acordo.
Em um notável número de ocasiões — na realidade, na maioria delas
—, os pesquisadores discordam abertamente.
Talvez nos seja útil
examinar uma série de tipos de mudanças intencionais que se pode
encontrar em nossos manuscritos, visto que elas podem nos dar as
razões pelas quais os copistas fizeram as alterações.
Em algumas ocasiões, os copistas mudaram seus textos porque
pensavam que eles continham um erro factual. Esse parece ser o caso do
iniciozinho de Marcos, onde o autor introduz seu Evangelho dizendo:
“Assim como está escrito em Isaías, o profeta, ‘eis que estou enviando
um mensageiro diante de vossa face… Aplaineis os vossos caminhos’”.
O problema é que o início da citação não é de Isaías. Ela representa
uma combinação de uma passagem de Êxodo 23:20 e uma de
Malaquias 3:1. Os copistas, reconhecendo a dificuldade, mudaram o
texto, levando-o a dizer: “Assim como está escrito nos profetas…”. E
assim deixava de existir o problema de atribuição equivocada da
citação. Mas há pouca razão para duvidar do que Marcos escreveu
originalmente: a atribuição a Isaías é encontrada em nossos mais
primitivos e melhores manuscritos.
Há ocorrências em que o “erro” que o copista tentou corrigir era
não factual, mas de interpretação. Um célebre exemplo provém de
Mateus 24:36, onde Jesus está predizendo o fim dos tempos e diz que
“acerca daquele dia e hora, ninguém sabe — nem os anjos nos céus,
nem mesmo o Filho, só o Pai”. Os copistas acharam essa passagem
difícil: o Filho de Deus, o próprio Jesus, não sabe quando virá o fim?
Como pode ser isso? Ele não é onisciente? Para resolver o problema,
alguns copistas simplesmente modificaram o texto, eliminando as
palavras “nem mesmo o Filho”. Afinal, os anjos podem ser ignorantes.
O Filho de Deus, jamais.19
Em outros casos, os copistas mudaram o texto não porque achassem
que ele continha um erro, mas porque queriam prevenir um malentendimento
dele. Exemplo disso é Mateus 17:12-13, onde Jesus
identifica João Batista como Elias, o profeta que viria no fim dos
tempos:
“Eu vos digo que Elias já veio, e eles não o reconheceram, mas
fizeram a ele tudo o que quiseram. Assim também o Filho do
Homem vai sofrer por eles.” Então os discípulos compreenderam
que ele estava lhes falando de João Batista.
O problema latente é que, a depender da leitura, o texto poderia ser
interpretado como dizendo não que João Batista era Elias, mas o Filho
do Homem. Os copistas sabiam perfeitamente que esse não era o caso.
Por isso, alguns deles deram novo arranjo ao texto, passando a frase
“os discípulos compreenderam que ele estava lhes falando de João
Batista” para antes da afirmativa sobre o Filho do Homem.
Às vezes, os copistas mudavam o texto por razões mais patentemente
teológicas, para se assegurar de que o texto não seria usado por
“hereges”, ou para garantir que ele diria o que os copistas supunham
que ele tinha de dizer. Há numerosos casos desse tipo de mudança, que
examinaremos mais detidamente em um capítulo posterior. Por
enquanto, indicarei simplesmente alguns rápidos exemplos.
No século II, havia cristãos que acreditavam firmemente que a
salvação trazida por Cristo era algo de completamente novo, superior a
tudo o mais que o mundo tivesse um dia visto e certamente superior à
religião do judaísmo, da qual emergira o cristianismo. Alguns cristãos
chegaram até mesmo a insistir que o judaísmo, a velha religião dos
judeus, fora completamente superada pelo aparecimento de Cristo. Para
alguns copistas dessa crença, a parábola que Jesus conta sobre o vinho
novo em odres velhos poderia parecer problemática.
Ninguém põe vinho novo em odres velhos… Mas o vinho novo deve
ser posto em odres novos. E nenhum daqueles que beber do vinho
velho desejará o novo, porque diz: “O velho é melhor” (Lucas 5:38-
39).
Como poderia Jesus ter indicado que o velho é melhor que o novo?
Não é a salvação que ele traz superior a tudo o que o judaísmo (ou
qualquer outra religião) tinha a oferecer? Os copistas que consideraram
o dito perturbador simplesmente eliminaram a última sentença, de
modo que Jesus já não dizia nada acerca do velho ser melhor que o
novo.
Por vezes, os copistas alteraram o próprio texto para garantir que a
doutrina que defendiam fosse devidamente priorizada. Podemos ver
isso, por exemplo, no relato da genealogia de Jesus no Evangelho de
Mateus, que começa com o pai dos judeus, Abraão, e traça a
ascendência de Jesus de pai para filho, em sentido decrescente, até
“Jacó, que era o pai de José, o esposo de Maria, de quem nasceu Jesus,
que é chamado o Cristo” (Mateus 1:16). Pelo que se depreende, a
genealogia já trata Jesus como um caso excepcional, visto que não se diz
ser ele “filho de José”. Para alguns copistas, contudo, isso ainda não era
suficiente. Por isso, eles mudaram o texto, que passou a dizer: “Jacó,
que era o pai de José, com o qual tendo contraído noivado a Virgem
Maria, deu à luz Jesus, que é chamado o Cristo”. Desse modo, José não
é nem mesmo chamado esposo de Maria, mas apenas seu noivo, e dela
se afirma claramente que é uma virgem — ponto importantíssimo para
muitos dos copistas primitivos!
Houve ocasiões em que os copistas modificaram seus textos não por
causa da teologia, mas por razões litúrgicas. Visto que a tradição
ascética se firmou no cristianismo primitivo, não é de surpreender que
ela também tenha impacto sobre as mudanças que os copistas
impunham ao texto. Por exemplo, em Marcos 9, quando Jesus expulsa
um demônio que seus discípulos tinham sido incapazes de fazer se
mexer, ele lhes diz: “Esse tipo só sai por meio da oração” (Marcos
9:29). Copistas posteriores fizeram o acréscimo apropriado, na
perspectiva de suas próprias práticas, de modo que agora Jesus ensina:
“Esse tipo só sai por meio da oração e do jejum”.
Uma das mais célebres alterações litúrgicas do texto se encontra na
versão de Lucas do Pai-nosso. A oração também se encontra em
Mateus, naturalmente, e é essa forma mateana, mais extensa, que era, e
é, mais familiar aos cristãos.20 Em comparação, a versão de Lucas soa
desesperadamente truncada:
Pai, santificado seja vosso nome. Venha o vosso Reino. Dai-nos,
cada dia, nosso pão cotidiano. E perdoai nossos pecados, assim
como nós perdoamos os nossos devedores. E não nos leveis à
tentação (Lucas 11:2-4).
Os copistas resolveram o problema da versão abreviada de Lucas
acrescentando as petições conhecidas da passagem paralela em Mateus
6:9-13, de modo que agora, como em Mateus, a oração diz:
Pai nosso que estais nos céus, santificado seja vosso nome. Venha o
vosso reino e seja feita a vossa vontade, na terra como no céu. Dainos,
cada dia, nosso pão cotidiano. E perdoai nossas dívidas, assim
como nós perdoamos os nossos devedores. E não nos leveis à
tentação, mas livrai-nos do maligno.
A tendência dos copistas a “harmonizar” passagens nos Evangelhos
está por toda parte. Onde quer que a mesma narrativa seja contada em
Evangelhos diferentes, um copista ou outro parece surgir para assegurar
que os relatos estejam em perfeita harmonia, eliminando diferenças a
golpes de pena.
Às vezes, os copistas eram influenciados não por passagens
paralelas, mas por tradições orais sobre Jesus e por tradições sobre ele
que eram contadas e que circulavam à época. Já vimos isso em grandes
casos, no episódio da mulher flagrada em adultério e no dos últimos
doze versículos de Marcos. Em casos menores, também podemos ver
como as tradições orais afetaram os textos escritos dos Evangelhos. Um
exemplo notável é a memorável narrativa de João 5: Jesus curando um
paralítico às margens do tanque de Bethesda. É-nos dito no início da
narrativa que muitas pessoas — paralíticos, cegos, coxos e inválidos —
jaziam à beira do tanque e que Jesus escolheu um homem, que ali estava
havia trinta e oito anos esperando para ser curado. Quando Jesus
pergunta ao homem se gostaria de ser curado, o homem responde que
não há ninguém que possa jogá-lo do tanque, de modo que “quando a
água se agita” alguém sempre chega à água antes dele.
Em nossos mais antigos e melhores manuscritos, não há explicação
de por que esse homem queria entrar do tanque assim que as águas se
agitassem, mas a tradição oral corrigiu a falha com um acréscimo aos
versículos 3-4 encontrado em nossos manuscritos posteriores. Ali, é dito
que “um anjo, de tempos em tempos, descia ao tanque e agitava a água;
e o primeiro que descesse depois que a água fosse agitada seria
curado”.21 Um toque de beleza em uma história já bastante intrigante.
CONCLUSÃO
Poderíamos ficar por quase todo o sempre falando de passagens
específicas nas quais os textos do Novo Testamento vieram a ser
alterados, seja acidental ou intencionalmente. Como eu disse, os
exemplos se contam não às centenas, mas aos milhares. Os que foram
dados são suficientes para demonstrar o ponto geral, contudo: há
muitas diferenças entre nossos manuscritos, diferenças criadas por
copistas que reproduziam seus textos sagrados. Nos primeiros séculos
cristãos, os copistas eram amadores e, como tais, mais inclinados a
alterar os textos que copiavam — ou mais propensos a alterá-los
acidentalmente — que os copistas dos períodos posteriores, que, a partir
do século IV, começaram a ser profissionais.
É importante ver que tipos de mudança, tanto acidentais como
intencionais, os copistas foram capazes de fazer, porque, a partir daí,
fica mais fácil delimitar as mudanças e eliminar parte do esforço de
adivinhação implicado na tentativa de determinar qual forma do texto
representa uma alteração e qual representa sua forma primitiva.
Também é importante ver como os pesquisadores modernos projetaram
métodos para fazer esse tipo de determinação.
No próximo capítulo,
traçaremos as linhas dessa história, a começar do tempo de John Mill e
vindo até a atualidade, vendo que métodos foram desenvolvidos para a
reconstrução do texto do Novo Testamento e para o reconhecimento
das formas para as quais ele foi mudado em seu processo de
transmissão.
A última página do Evangelho de João no famoso Códice Sinaítico, encontrado no século XIX pelo resoluto descobridor de manuscritos, Tischendorf, no mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai.
Notas
* Em uma abadia ou mosteiro, uma sala destinada à escrita ou à cópia de manuscritos. Um scriptorium (plural scriptoria) é uma sala onde se fazem cópias à mão de manuscritos, geralmente ao lado de uma biblioteca. Os scriptoria são uma instituição tipicamente cristã. Nos mosteiros, o scriptorium era uma sala, raramente um edifício, utilizado para a cópia profissional de manuscritos. O diretor de um scriptorium monástico era o armarius, que providenciava material de trabalho para os copistas e coordenava o processo. Rubricas e iluminuras eram acrescentadas às cópias por outro tipo de especialistas. [N. do T.]
1. Para minha acepção do termo copista profissional, ver nota 8 do capítulo 2.
2. Hoje, Eusébio é largamente conhecido como o sacerdote da história eclesiástica por causa de seu relato em dez volumes dos primeiros trezentos anos da igreja.
3. Para uma discussão sobre a inexistência de indícios de scriptoria nos primeiros séculos, ver:
HAINES-EITZEN, Kim. Guardians of Letters, op. cit., p. 89-91.
4. Para um panorama dessas antigas “versões” (isto é, traduções) do Novo Testamento, ver:
METZGER, Bruce M.; EHRMAN, Bart D. Text of the New Testament, op. cit., cap. 2, seção 2.
5. Para as versões latinas do Novo Testamento, incluindo a obra de Jerônimo, ver: METZGER,
Bruce M.; EHRMAN, Bart D. Text of the New Testament, op. cit., cap. 2, seção 2.
6. Para maiores informações sobre essa e outras edições impressas discutidas nas páginas
seguintes, ver: METZGER, Bruce M.; EHRMAN, Bart D. Text of the New Testament, op. cit.,
cap. 3.
7. Ver, especialmente, o relato informativo em: TREGELLES, Samuel P. An Account of the
Printed Text of the Greek New Testament. Londres: Samuel Bagster & Sons, 1854. p. 3-11.
8. Em latim: “Textum ergo habes, nunc ab omnibus receptum: in quo nihil imutatum aut
corruptum damus”.
9. Ver: METZGER, Bruce M.; EHRMAN, Bart D. Text of the New Testament, op. cit., cap. 3,
seção 2.
10. Ênfase de Whitby, apud FOX, Adam. John Mill and Richard Bentley: a Study of Textual
Criticism of the New Testament, 1675-1729. Oxford: Blackwell, 1954. p. 106.
11. Ibidem, p. 106.
12. LIPSIENSIS, Phileleutherus. Remarks upon a Late Discourse of Free Thinking. 7. ed.
Londres: W. Thurbourn, 1737. p. 93-94.
13. Meu amigo, Michael Holmes, chama minha atenção para o fato de que, das sete mil cópias
da Bíblia grega (tanto o Novo Testamento grego quanto o Antigo Testamento grego), menos de
dez, ao que saibamos, ainda contêm a Bíblia inteira, o Antigo e o Novo Testamentos. Desses
dez, todos agora têm falhas (páginas faltando aqui e acolá); e só quatro deles são anteriores ao
século X.
14. Manuscritos — cópias à mão — continuaram a ser feitos depois da invenção da imprensa,
do mesmo modo como algumas pessoas continuam a usar máquinas datilográficas hoje, mesmo
com todos os processadores de texto disponíveis.
15. Veremos que as quatro categorias de manuscritos não seguem os mesmos princípios. Os
papiros são escritos em escrita uncial, assim como os unciais, mas em uma superfície de escrita
distinta; os minúsculos são escritos no mesmo tipo de superfície dos unciais (pergaminho), mas
em um tipo de escrita diferente.
16. Para mais exemplos de mudanças acidentais, ver: METZGER, Bruce M.; EHRMAN, Bart
D. Text of the New Testament, op. cit., cap. 7, seção 1.
17. Quem tiver interesse em ver como os pesquisadores debatem acerca das virtudes de uma
leitura ou de outra deve ver: METZGER, Bruce M. A Textual Commentary, op. cit.
18. Devo esse exemplo, assim como vários dos exemplos anteriores, a Bruce M. Metzger. Ver:
METZGER, Bruce M.; EHRMAN, Bart D. Text of the New Testament, op. cit., p. 259.
19. Para aprofundar a discussão dessa variante, ver p. 213-214.
20. Para uma discussão mais completa das variantes nas tradições do Pai-nosso, ver: PARKER,
David C. Living Text of the Gospels, op. cit., p. 49-74.
21. Há várias variantes textuais entre os testemunhos que atestam essa forma mais longa da
passagem.
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